O colégio que constitui a principal riqueza da família Soares tem um registo predial cheio de surpresas. A actual delimitação da propriedade onde está instalado resulta de um processo administrativo que contém informações falsas - as quais permitiram a quase duplicação da sua área original.
Nas seis décadas em que esteve arrendado ao Colégio Moderno, até ser por ele comprado há dois anos, o prédio inchou 1879 metros quadrados: passou de 2980 para 4859 m2. Os beneficiados foram o próprio colégio e a sua antiga senhoria. O prejudicado foi o Estado e a Universidade de Lisboa, actual dona dos terrenos confinantes.
Nas seis décadas em que esteve arrendado ao Colégio Moderno, até ser por ele comprado há dois anos, o prédio inchou 1879 metros quadrados: passou de 2980 para 4859 m2. Os beneficiados foram o próprio colégio e a sua antiga senhoria. O prejudicado foi o Estado e a Universidade de Lisboa, actual dona dos terrenos confinantes.
O Colégio Moderno e a anterior proprietária das suas instalações invocaram factos inverídicos, em 1998, para conseguirem legalizar a ocupação de uma grande parte dos terrenos em que o ex-presidente Mário Soares e a família construíram diversos edifícios escolares nos últimos 18 anos.
Para o conseguir, os interessados obtiveram a colaboração da vizinha Universidade de Lisboa (UL), a qual certificou a pertença ao colégio de uma área de quase dois mil metros quadrados, que legalmente lhe pertencia a ela. Aos preços que a universidade pagou pela parcela contígua, a família Soares deveria ter desembolsado cerca de 82.300 contos para adquirir os terrenos em questão.
Arrendada em 1936 por João Lopes Soares, pai de Mário Soares, a propriedade do colégio - com entrada pela então Estrada de Malpique, ao Campo Grande, em Lisboa (actual Rua dr. João Soares) - pertencia à sociedade Flora & Fauna Ldª, que a adquirira dois anos antes. Tratava-se de um prédio urbano, recentemente desanexado de uma grande unidade agrícola denominada Quinta da Cônsul da Holanda, e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa como um "terreno de 2980 metros quadrados no qual existe uma moradia de rez-de-chão e primeiro andar, palheiros, abegoaria e cocheira".
A parte rústica da antiga Quinta do Cônsul da Holanda, também conhecida por Quinta da Misericórdia e Quinta do Tarujo, foi na mesma época comprada pela firma A. Meireles Ldª, sociedade que se dedicava aos negócios imobiliários e que pretendia construir "casas económicas" na vasta área hoje ocupada pela Cidade Universitária.
Ainda na segunda metade da década de 30, os seus terrenos foram retalhados em lotes, a maior parte dos quais depois expropriada para dar lugar às instalações da universidade. A parcela contígua à da Flora & Fauna - nas traseiras do colégio - acabaria por não ser expropriada nessa altura, passando por várias mãos até ser adquirida, em 1953, por Teodoro Mosquera, um galego residente no Porto.
No início dos anos 70, ainda com o objectivo de a urbanizar, Mosquera associar-se-ia a Manuel António da Mota, fundador do grupo Mota & Cia., sendo a sociedade constituída por ambos que viria a ser finalmente expropriada, em 1988, para erguer a Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.Ao longo deste meio século, a propriedade que confinava a poente com o colégio teve assim uma vida extremamente atribulada, com sucessivos proprietários, a maior parte do tempo ausentes de Lisboa, e com sucessivos projectos, sempre adiados, de urbanização e expropriação.
À excepção das décadas de 70 e 80, quando parcialmente ocupado pelos estaleiros da Mota & Cia, este lote de 12 026 m2, foi deixado praticamente ao abandono, dando azo à instalação de numerosas habitações clandestinas, que só foram demolidas, junto à zona ocupada pelo Moderno, no decurso das obras da faculdade. Entretanto, logo no fim dos anos 30, o Colégio Moderno, que teve Mário Soares como gerente desde 1955 até 1994 - com uma ou outra interrupção - começou a expandir-se para os terrenos vizinhos. Neles criou uma zona de recreio, e, mais tarde, também uma construção precária, próximo daquela que é hoje a extrema da propriedade. Esta ocupação desenrolou-se sem incidentes, num quadro de total indefinição quanto ao futuro da área envolvente.
Foto: Becastanheiradepera.blogs.sapo.pt |
Só na década de 70 é que se registaram algumas fricções, conhecidas apenas da vizinhança, entre o colégio e um dos donos do lote confinante com o da Flora & Fauna.
Chegada a década de 80, já com a totalidade das quotas do colégio nas mãos de Mário Soares, da mulher e dos filhos João e Isabel Soares, e com as indefinições sobre o futuro da zona limítrofe praticamente ultrapassadas - no final dos anos 70 foi definitivamente posta de parte a hipótese de a urbanizar e de lá construir uma grande avenida -, a família Soares iniciou a construção de diversos edifícios nos terrenos que tinha ocupado.
O último destes imóveis, levantado em 1996 sem licença da Câmara de Lisboa, acabou por consolidar o alargamento da propriedade, funcionando, desde então, como linha divisória entre os terrenos ocupados pelo colégio e a parcela entretanto expropriada pela UL.Dois anos depois, em Abril de 1998, quando o Colégio Moderno chegou a acordo com a senhoria para comprar o prédio urbano que arrendara à Flora & Fauna em 1936, levantou-se-lhe, porém, um problema muito complicado.
A propriedade em questão, que desde 1965 pertencia exclusivamente a uma antiga sócia da Flora & Fauna, estava descrita na Conservatória do Registo Predial como tendo uma área muito inferior àquela que o colégio realmente ocupava e ocupa. Os 2980 metros quadrados que lá estavam registados, com apenas uma vivenda construída, correspondiam a pouco mais de metade do espaço quase integralmente coberto por numerosos edifícios feitos pelo colégio. Além disso, os dados constantes da matriz predial existente nas Finanças atribuiam ao prédio uma área ainda mais pequena: uma superfície total de 922 metros quadrados, com uma área coberta de 382 metros quadrados.
Para ultrapassar o problema e legalizar a ocupação dos terrenos vizinhos, não restavam muitas alternativas aos donos do colégio e à sua senhoria, Maria Helena Guizado Henriques. Ou adquiriam por usucapião a parcela ocupada - visto que a ocupavam pública e pacificamente, sem contestação, há várias décadas - ou pediam ao Registo Predial e às Finanças a rectificação da área do prédio. A primeira hipótese, para além de trabalhosa - já que exigia a celebração de uma escritura pública -, teria alguns riscos, nomeadamente porque o último "crescimento" da propriedade tinha ocorrido muito pouco tempo antes, aquando da construção do mais recente edifício do colégio.
Na vizinhança e entre os antigos trabalhadores do estaleiro da Mota & Companhia, aliás, muita gente sabia e comentava que essa construção fizera avançar o colégio para dentro dos terrenos da universidade. Restava então o procedimento da rectificação da área.
Para isso bastava fazer o pedido às Finanças e, com base nele e numa declaração dos proprietários confinantes, neste caso apenas a Universidade de Lisboa, requerer à conservatória a alteração do registo.Foi isso que aconteceu.
O reitor da universidade, Meira Soares, assinou uma declaração e uma planta a certificar que a propriedade da antiga Flora & Fauna coincidia com os terrenos ocupados pelo colégio. O requerimento foi entregue às Finanças em 9 de Abril de 1998 e o pedido de averbamento da nova área de 4859 m2 (mais 1879 m2) deu entrada na conservatória no mesmo dia.Este pedido de averbamento foi subscrito pela senhoria e contém, por baixo da sua assinatura, uma declaração do colégio arrendatário, assinada pela sua gerente, Isabel Soares, em que se afirma: "Concordamos com o teor de todas estas declarações complementares."
E com que é que o colégio concorda? Trata-se dos fundamentos do pedido de rectificação da área da propriedade, que são, no essencial, os seguintes: "O prédio mantém a mesma área desde a data do início do arrendamento [1936], estando essa área, presentemente e já desde os anos quarenta, completamente murada, tendo alguns dos muros pré-existentes sido substituídos pelas paredes de algumas construções que o compõem".
No parágrafo seguinte explica-se que, pretendendo a proprietária vender o prédio ao colégio, "procedeu-se às medições correctas do mesmo e verificou-se que a sua área total é de 4859,44 m2 e não de 2980 m2, compondo-se o prédio de 430 m2 de área coberta, correspondente a um edifício com rés-do-chão, primeiro andar e sótão e 4429,44 m2 de área descoberta".Finalmente, diz a declaração que, "atendendo a todos os factos invocados e por ter havido erro de medição anterior, que se reporta a 1934, solicita que se proceda à rectificação pedida".
Sucede que, conforme é sabido por todos os que conheciam o terreno, a última construção erguida no local ultrapassou largamente a delimitação anteriormente assegurada pelo edifício que substituíu e que constituía a extrema superior da área ocupada. E ainda que a alegada composição actual da propriedade, com um único edifício de 430 m2 de área coberta, é uma ficção face ao emaranhado de construções que lá se encontra. O fundamental, porém, prende-se com a alegação de que houve "um erro de medição" quando a propriedade foi registada em em 1934. O PÚBLICO está em condições de afirmar que, de facto, não houve erro algum na medição original.
A propriedade arrendada em 1936, correspondente à descrição predial nº 18 156 da freguesia do Campo Grande, teve sempre, desde que foi desanexada da Quinta do Cônsul da Holanda, um total de 2980 m2. E os 1879 m2 restantes provêm da apropriação de terrenos pertencentes à parcela contígua.Para o provar basta ver a escritura de compra e venda lavrada em 21 de Março de 1934 no cartório do notário Maia Mendes, por intermédio da qual a sociedade Flora & Fauna adquiriu o prédio que dois anos depois arrendou ao Colégio Moderno.
Lá se escreve que o prédio tem a área total de 2980 m2 e que, "para evitar dúvidas", os vendedores e os proprietários da parte rústica da quinta de onde ele foi desanexado "acordaram com a compradora em que fique fazendo parte da presente escritura uma planta de todo o antigo prédio, na qual se acha destacado a cor de rosa o prédio urbano que pela presente escritura se vende (...) planta essa que, assinada por todos os signatários da presente escritura, fica na verdade arquivada como parte dela, para os efeitos legais".
Observando a planta em questão, arquivada no notário, lá se vê, a cor de rosa, o prédio vendido, com a inscrição "Área 2980 m2", e com uma delimitação na parte superior, por referência à moradia ainda hoje existente, que corresponde a pouco mais de metade do perímetro que a senhoria e o colégio declararam ser aquele que o prédio mantém desde 1934.Apesar desta planta, que seria certamente desconhecida na conservatória, a "rectificação" foi imediatamente averbada à descrição predial, em Abril de 1998, e o registo oficial do prédio nº 18.156 passou a indicar 4859, 44 m2.
O requerimento apresentado às Finanças, que esteve na origem da alteração, esse é que ainda está no monte dos "pendentes", sem que os serviços do 8º Bairro Fiscal tenham sequer iniciado a sua análise.
Assim legalizada a ocupação dos terrenos vizinhos, a escritura de compra e venda foi efectuada, logo no mês seguinte, no conhecido escritório dos advogados Jardim, Sampaio, Caldas & Associados, ficando a família Soares na posse da "nova" propriedade de 4859 m2 pelo preço de 80 mil contos. Se tivesse optado por negociar com a Universidade os 1879 m2 que não pertenciam à parcela original da Flora & Fauna, só esse pedaço de terra ter-lhe-ia custado, pelo menos - ao preço pelo qual a reitoria pagou, por decisão judicial, o lote expropriado em 1988 -, um total de 82.300 contos.
Fonte: Público
Os segredos da família Soares
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